Ari Pedro Balieiro Junior
Psicólogo e psicoterapeuta (PUCCamp)
Mestre em Lingüística (Unicamp)
[email protected]
Nível de dificuldade: Médio Alto
A utilização da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) com crianças vem crescendo, a despeito dos inúmeros mitos que ainda sobrevivem, sobretudo no Brasil, a respeito desta abordagem.
Muitos terapeutas ainda acreditam no mito de que a TCC seria uma abordagem limitada, formada por um conjunto de técnicas estereotipadas, rígidas e pré-definidas, a serem aplicadas mecanicamente, sem levar em conta as características individuais de cada cliente, como seu nível de desenvolvimento e seu contexto ambiental.
Outro mito diz que a TCC seria impossível de utilizar com crianças, porque exigiria habilidades de raciocínio lógico fora do alcance da capacidade do estágio de desenvolvimento das crianças.
Nenhum destes mitos, no entanto, resiste a uma análise simples, seja da estrutura da TCC, seja das condições características da psicoterapia com crianças.
A ESTRUTURA DA TCC
Tendo sido desenvolvida a partir dos princípios da aprendizagem e da ciência cognitiva, descobertos através de experimentos e formulações teóricas rigorosas, a TCC propõe que os problemas emocionais e comportamentais surgem como conseqüência de “um modo distorcido ou disfuncional de perceber os acontecimentos, influenciando o afeto e o comportamento” (Falcone, 2001: 50).
Para ajudar seu cliente com a TCC, o terapeuta busca entender como interagem, na vida daquele cliente em particular, três fatores: o comportamento (o que a pessoa faz e como ela o faz), as cognições (o que a pessoa pensa e sente, e como ela pensa e sente), e as condições ambientais (como se estrutura e organiza o ambiente no qual a pessoa vive).
À medida que compreende como estes três fatores interagem, o terapeuta elabora um plano de intervenção para modificar ou corrigir a distorção ou disfuncionalidade que produz o sofrimento.
Vê-se assim que, ao contrário de estereotipada, rígida e pré-definida, a TCC é um procedimento que exige alta flexibilidade e criatividade por parte do terapeuta, que deve adaptar e ajustar seu plano de trabalho às condições específicas de cada cliente, como se fosse um alfaiate, que corta a roupa para ajustá-la às medidas do cliente.
A PSICOTERAPIA COM CRIANÇAS
A psicoterapia com crianças tem em comum com a psicoterapia com adultos os objetivos: propiciar, ensinar ou desenvolver, no cliente, habilidades e competências que lhe permitam não apenas obter o alívio do sofrimento como a retomada da normalidade da vida saudável.
Diferentemente da psicoterapia com adultos, no entanto, a psicoterapia com crianças, normalmente, implica dois tipos distintos, embora interdependentes, de atuação do terapeuta: a intervenção realizada diretamente com a criança e a intervenção realizada com os pais, ou com a família.
Quando trabalha ou dialoga com os pais, ou com a família, que é geralmente um diálogo entre adultos, o terapeuta, embora também deva se adaptar ao nível cultural e à linguagem própria de cada família, pode atuar de forma mais diretiva e pedagógica.
Quando trabalha diretamente com a criança, no entanto, o terapeuta precisa levar em conta que, estando ainda em formação, ela apresenta maneiras próprias de pensamento, sentimento e comportamento, que, geralmente configuram um “mundo de fantasia”, expresso nos jogos e atividades lúdicas em que a criança se engaja.
Se o terapeuta praticando a TCC, como vimos, deve adaptar seus procedimentos a cada um de seus clientes em particular, na prática direta com a criança o terapeuta considera o estágio específico de desenvolvimento em que ela se encontra, descobrindo e utilizando sua linguagem própria, entrando em seu “mundo de fantasia”.
Em outras palavras, o terapeuta praticando a TCC no contato direto com crianças (aliás como acontece em praticamente todas as abordagens), trabalha “indiretamente”, através de metáforas e jogos, ajustando cada um deles ao objetivo escolhido para cada etapa do plano de tratamento.
Este artigo pretende mostrar como a TCC utiliza técnicas, atividades e procedimentos lúdicos e metafóricos que podem ser empregados com crianças de qualquer idade, e, bem utilizados, podem tornar a psicoterapia um processo divertido e estimulante.
Para ilustrar estas possibilidades, descreveremos algumas técnicas ou atividades que podem ser usadas para desenvolver as habilidades de auto-observação (ou auto-monitoramento), de solução de problemas e de auto-instrução ou autocontrole.
ALGUMAS TÉCNICAS OU ATIVIDADES
O Relógio do Sentimento
O Relógio do Sentimento é uma atividade que visa desenvolver na criança as habilidades de auto-observação dos sentimentos e pensamentos.
As crianças criam relógios de brinquedo utilizando papel e outros materiais, como velcro, tachinhas, etc., no qual elas desenham “carinhas” que expressam quatro (ou mais) estados emocionais (bravo, triste, contente e preocupado) nos locais em que ficariam os “quartos de hora” (3:00h, 6:00h, 9:00h e 12:00h).
Pronto o relógio, as crianças podem usá-lo tanto para se expressar, ajustando seus ponteiros de acordo com o estado que estão experimentando ou sentindo naquele momento, o que permite à criança, de uma maneira divertida, expor seus sentimentos para os terapeutas e pais, ao mesmo tempo que estimula o auto-exame e a auto-expressão das emoções.
Um outro aspecto do relógio é que, ao criar uma “externalização” das emoções (a “carinha” do relógio), fornece à criança um “feedback” sobre si própria que possibilita que a criança entre em contato com suas próprias emoções, conheça-as melhor, estabeleça distinções mais sutis entre elas, em suma, ajuda na progressiva educação emocional da criança.
Além disso, com o uso continuado do relógio, a criança começa a perceber e aprender vários fatos importantes sobre o funcionamento as emoções em geral, como por exemplo, que “emoções variam com o passar do tempo”, que “a pessoa pode sentir mais de uma emoção ao mesmo tempo”, que “emoções são fenômenos naturais e esperados do ser humano”, e muitas outras coisas.
Praticamente qualquer atividade que envolva a emoção pode utilizar o Relógio do Sentimento. Terapeutas criativos usam o relógio de várias maneiras diferentes, como por exemplo, pedindo à criança para ajustar o relógio em um sentimento estimulam-na a fantasiar as circunstâncias em que este sentimento surge; ou a explorar os pensamentos que acompanham estes sentimentos; ou a praticar estratégias que permitam lidar com estes sentimentos; ou a encontrar formas de expressar estes sentimentos; e assim por diante.
A Locomotiva do Medo
A Locomotiva do Medo é também uma atividade que visa ensinar habilidades de auto-observação dos sentimentos e pensamentos, mas que põe sua ênfase na observação do medo e da ansiedade.
O terapeuta, conversando com a criança, compara a ansiedade a um trem, que corre nos trilhos, mas está fora de controle, e, com isto, abre caminho para atividades lúdicas de elaboração e aprendizagem sobre o medo e a ansiedade utilizando a metáfora do trem e do “mundo” ferroviário, como estações, passageiros, viagens, locomotivas, vagões, maquinistas, foguistas, etc.
Após ter sido apresentada à metáfora, a criança é convidada a desenhar uma locomotiva, colorindo-a com a cor que melhor representa sua ansiedade. Inicia-se, então uma viagem de fantasia, em que o trem passa por várias estações, como o corpo, a mente, as ações, os contextos, as pessoas, as relações, etc. A cada estação em que o trem para, a criança é convidada a explorar sua ansiedade, identificando-a, percebendo como ela se manifesta naquela estação, relacionando-a com as características daquela estação, etc.
A metáfora da ansiedade como uma “locomotiva sem controle”, além de criar uma “forma” de representar a ansiedade e oferecer um referencial concreto para o pensamento da criança, apresenta vários aspectos adicionais que são muito valiosos para ajudar a criança a construir seu entendimento sobre a ansiedade e aprender a controlá-la. Dentre estes aspectos, podemos citar:
-
assim como a locomotiva “corre sobre os trilhos”, a ansiedade também tem seus “trilhos”: os pensamentos automáticos e as reações condicionadas;
-
assim como a locomotiva passa por várias estações, cada uma com suas características, a ansiedade envolve diversos componentes, ou aspectos (ambientais, cognitivos, interpessoais, comportamentais, emocionais), sobre os quais a criança pode aprender muito durante suas “viagens”;
-
assim como o trem carrega passageiros e é “dirigido” pelo maquinista, a criança pode aprender a diferenciar o papel de “passageiro” da ansiedade do papel de “maquinista” dela, podendo então aprender como sair de um para outro, passando de uma atitude passiva para uma atitude ativa a respeito da ansiedade;
-
assim como o maquinista controla a locomotiva olhando os mostradores dos instrumentos e do motor, o controle da ansiedade exige que a criança aprenda a olhar seus próprios sinais-indicadores do surgimento e da intensidade da ansiedade;
-
assim como o maquinista dispõe de “freios” para reduzir a velocidade da locomotiva, a criança pode desenvolver meios de reduzir a ansiedade, como as técnicas de interrupção dos ciclos automáticos de pensamento que alimentam a ansiedade;
-
assim como a velocidade da locomotiva é mantida e aumentada pela quantidade de carvão que é posta na caldeira, a criança pode aprender a diminuir “a temperatura da caldeira” ou a “força do motor” através de exercícios de respiração e relaxamento; e assim por diante.
Uma outra vantagem adicional da Locomotiva do Medo é que permite ao terapeuta conhecer com mais detalhes os medos e ansiedades da criança sem que ele tenha que interrogá-la diretamente, o que é muitas vezes inútil, se não contraproducente.
Estátua!
Estátua! é uma técnica que, usando uma brincadeira bastante conhecida, visa ensinar habilidades de auto-observação, com foco nos sinais internos (interoceptivos) de caráter fisiológico, cognitivo e emocional. Também ajuda a desenvolver habilidades de auto-instrução e autocontrole.
A brincadeira é bem simples: o terapeuta diz “Valendo!” e a criança começa a movimentar-se (caminhar, dançar, brincar, etc.); quando o terapeuta diz “Estátua!”, a criança deve parar o mais rápido que puder, ficando o mais imóvel possível, na posição em que estava quando o terapeuta disse “Estátua!”. A parada brusca cria tensões corporais, que o terapeuta utiliza para ajudar a criança a desenvolver a própria percepção interrogando-a sobre o que percebe no próprio corpo (músculos, respiração, posição, etc.).
Depois que a criança já consegue identificar as tensões que produz, o terapeuta pode aprofundar o uso da técnica, em duas direções: por um lado, levando a criança a comparar as sensações da experiência de estátua com as sensações da experiência do medo, o que permite à criança aprender a identificar os sinais de ansiedade; por outro lado, o terapeuta pode aproveitar a pose de estátua para ajudar a criança a desenvolver técnicas de imaginação ativa que a ajudem a diminuir a tensão.
Num nível metafórico, a brincadeira de Estátua! ajuda a criança a pensar na “interrupção” provocada pela ansiedade e pelo medo. Como é uma brincadeira muito comum, inclusive em escolas, Estátua! pode ser combinada, criativamente com outros tipos de brincadeira, como a Máscara do Herói (ver adiante) além de ensinar habilidades importantes para a Locomotiva do Medo (ver atrás).
A Máscara do Herói
A Máscara do Herói é uma atividade destinada a ensinar procedimentos de solução de problemas, através de um jogo em que a criança escolhe um herói (por exemplo: pais, professores, amigos, atleta famoso, ator/atriz, figura histórica), e depois faz uma “máscara” deste herói, colando sua figura em um pedaço de cartolina com formato de rosto, como aquelas máscaras de papelão que usamos no carnaval.
Usando a máscara, a criança “faz de conta” que é o herói, e que vai enfrentar diversos desafios, nos quais se incluem os problemas que foram escolhidos para serem trabalhados naquela sessão ou estágio. A tarefa do “herói” é criar soluções alternativas para os problemas escolhidos.
Ao colocar a máscara e “tornar-se outra pessoa”, e ainda por cima outra pessoa “poderosa”, um “herói”, a criança tem bastante alterada sua perspectiva do problema considerado, em importantes aspectos, dos quais vale destacar:
-
como o problema está sendo abordado pelo “herói”, a criança consegue ganhar distanciamento emocional do problema, o que facilita a consideração das características do problema;
-
olhando o problema da perspectiva de outra pessoa (o “herói”), a criança consegue evitar a “pressão” para resolver o problema, ganhando em flexibilidade de pensamento e podendo explorar alternativas para a interpretação e para a solução da situação do problema;
-
sendo o “herói” (e “heróis” tem “poderes”), a criança pode questionar suas crenças sobre sua própria competência, abrindo caminho para romper as barreiras do “eu não consigo” e identificando habilidades e recursos que tem ou precisa aprender e desenvolver;
-
ao explorar formas diferentes de pensar sobre o problema e soluções alternativas, a criança pode mudar a perspectiva que tem sobre si mesmo, ganhando auto-confiança.
Do ponto de vista do terapeuta, este jogo também permite explorar o modelo de representação da criança sobre si mesma, o mundo e os problemas que enfrenta, possibilitando ao terapeuta identificar com mais facilidade as habilidades e as dificuldades da criança, sem que seja necessário questioná-la diretamente, como no jogo da Locomotiva do Medo.
Reciclar os pensamentos
Reciclar os pensamentos é uma técnica que visa desenvolver a flexibilidade do pensamento e as habilidades de auto-instrução e autocontrole. Esta técnica é mais facilmente usada com crianças de alguma idade, pré-adolescentes e adolescentes, que já tem alguma experiência do mundo e conhecem o dinheiro.
A metáfora base desta técnica é a substituição de notas de dinheiro desgastadas por notas novas, um processo de reciclagem comum em nossa sociedade. O terapeuta associa os habituais pensamentos e interpretações negativos às notas de dinheiro desgastadas, amassadas e sujas, que devem ser substituídas por notas fresquinhas, estalando de novas, as quais trarão pensamentos e interpretações mais produtivos.
As crianças são instruídas a escrever seus pensamentos negativos em pedaços de papel em formato de notas, que são então amassadas e sujas, como se fossem notas de dinheiro muito usadas. Depois recebem papéis novos, nos quais devem escrever as declarações positivas que irão substituir os pensamentos antigos e gastos. Estes papéis novos são entregues ao terapeuta, que os deposita no “banco”. Finalmente, as crianças vão ao “banco”, trocar as notas velhas pelas notas novas.
Nesta tarefa, a realização física da troca facilita a memorização e a simbolização da troca. As crianças são então instruídas a usar as “notas novas” sempre que os pensamentos negativos (as “notas velhas”) aparecerem, levando consigo os recursos desenvolvidos na terapia, para o seu dia a dia. Além disso, a metáfora aproveita a onda de “reciclagem” que o crescimento da consciência ecológica vem criando em nossa sociedade.
CONCLUSÃO
A Terapia Cognitivo Comportamental, ao contrário do que é veiculado em muitos mitos, é uma experiência bastante rica e variada, exigindo do seu praticante uma atitude permanente de criatividade e atenção para as condições específicas de seu cliente a cada momento.
É preciso ressaltar que as exigências de planejamento, definição de objetivos e avaliação constantes e permanentes não são uma “camisa de força” para o terapeuta, mas antes uma forma rigorosa e experimentalmente testada de garantir a qualidade do trabalho... se este rigor for combinado com a flexibilidade e criatividade que propusemos, a TCC mostrar-se-á uma experiência rica e profundamente estimulante intelectualmente, tanto para o terapeuta quanto para o cliente, criança ou não.
BIBLIOGRAFIA - para saber mais – em português
Sobre TCC com crianças.
SOUZA, Conceição Reis & BAPTISTA, Cristiana Pereira (2001) Terapia cognitivo-comportamental com crianças. In: RANGÉ (2001).
Sobre TCC em geral
FALCONE, Eliane (2001) Psicoterapia cognitiva. In: RANGÉ (2001).
RANGÉ, Bernard (org.) (2001) Psicoterapias cognitivo-comportamentais – um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 2001.
BECK, Judith S. (1995) Terapia Cognitiva – Teoria e prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
BECK, Aaron T. & ALFORD, Brad, A. (1997) O Poder integrador da Terapia Cognitiva. Porto Alegre: Artmed, 2000. |