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“Pega” ou “Não pega” re-aprendendo a pensar a transmissão do HIV

Marcelo Araújo Campos
Infectologista, Sanitarista e Presidente da Associação Brasileira de Redutores de Danos

As afirmativas em termos científicos são cautelosas. Dizer que “assim pega” e “assim não pega” HIV tem sua utilidade mas pode resvalar para um lado de se acreditar ou não no que se diz, ou seja, fica parecendo ser questão de fé acreditar que pega ou não pega, e as pessoas começam a se posicionar escolhendo uma alternativa mais em função de crenças ou desejos pessoais que em função de compreensão de como funciona o contágio. Explico: em termos científicos, se alguém me pergunta se o sol vai nascer amanhã, eu digo “acredito que sim”. Não respondo “vai” nem respondo “não vai”. Minha resposta “acredito que sim” significa que, considerando como funciona o mundo girando ao redor do sol, a alternativa “não vai nascer”, mesmo se teoricamente válida (e é), é remota demais para influir na minha agenda. Isso é raciocínio científico: reconhecer que não temos certeza absoluta sobre as coisas e tomar decisões - baseadas nas evidências e no conhecimento acumulados - sobre as chances de as coisas acontecerem ou não.

Aplicando o raciocínio à transmissão de infecções, e especificamente, no caso do HIV, podemos usar categorização diferente de “pega” e “não pega”, tentando representar melhor a continuidade que existe entre situações de risco muito baixo (ou “zero”) e “risco muito alto”, entre as quais ocorrem todos os graus de risco. 

O que se tenta, portanto, é estabelecer “cortes” nesse leque de possibilidades dividindo-o em categorias de situações em função da necessidade de cuidados específicos e mais adequados para gerenciar os riscos eventualmente presentes em cada situação. Embora também arbitrárias, quero crer que seriam mais úteis categorias descritas conforme o quadro abaixo. 

O conteúdo do quadro não é uma questão de fé. Foram acumulados muitos conhecimentos durante muitos anos de epidemia, em muitos lugares, por pessoas diferentes, e continuam a ser monitorados diariamente quanto à sua validade. Ou seja, essas informações vem sobrevivendo a repetidos questionamentos e tem sido reunidas evidências de que são válidas e úteis para tomada de decisões seguras no dia-a-dia. Aqui gostaria de lembrar uma analogia que me parece bem ilustrativa: mesmo se algum dia alguém morrer por uma “asteroidada” (a pancada por um asteróide ou meteoro) na cabeça, se após essa morte tão diferente (e que provavelmente iria ser muito comentada) nós víssemos alguém andando na rua com capacete de aço, ou com um “guarda-meteoro” aberto e com medo de andar na rua, alegando medo de outra pedra do céu, nós o acharíamos maluco, ou desejoso de chamar a atenção sobre si (e para isso defendendo opinião que ele próprio sabe ser falsa, mas defendê-la chama a atenção) ou muito mal informado sobre as possibilidades reais de alguém morrer por pancada de asteróide.

Aqui a comparação: mesmo se algum dia for documentado algum caso de transmissão de HIV por pernilongo, ou por contato casual, ou por alimento, e esse caso vir a ser mostrado nos jornais do mundo inteiro, isso não mudaria a orientação de que o medo dessas formas de transmissão não justifica mudarmos nossa forma de viver e de lidar com os portadores. Medo de HIV por sexo sem camisinha ou picada de agulha suja é razoável, medo de HIV transmitido pela saliva, comida, insetos ou água não é.

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